Duas Ceroulas ao Sol...
Roupa. Existe lisa, às bolinhas, mais sofisticada, menos sensual, de poliester, caxemira ou algodão… No entanto, seja ela prêt-à-porter ou de gala, necessita de ser lavada. O que significa que, usando amaciador ou dois em um, todo o par de ceroulas terá de secar. E, chegados a este ponto introduzimos uma pequena mas relevante notícia para a prática arquitectónica veículada pela agência Lusa. Se, como é sabido, as grandes mudanças fazem-se anunciar por pequenos sinais, estes vêm para já de Tarragona, Espanha, onde o município fez aprovar uma lei que, e passamos a citar: “para garantir o respeito mútuo e a convivência entre vizinhos - é proibido estender roupa à vista do público, nas varandas e janelas.” Neste momento, já esquecido do suave odor a lavanda das ceroulas, interrogar-se-á o caro leitor: que raio de relevância pode ter uma norma municipal de nuestros hermanos para a prática arquitectónica aqui do burgo? Pois bem, correndo o risco de o desiludir, é a essa ligação improvável que se dedica esta prosa.
Ponto prévio: Portugal é célere na importação de boas práticas, principalmente, se elas vierem em letra de lei e não implicarem mudanças estruturais mas antes proibições e respectivas coimas. Portanto, a questão não será se, mas quando será adoptada tão importante peça legislativa em território luso?
Esclarecido este ponto, avancemos para o âmago da questão: as formas de ocupar e habitar os objectos arquitectónicos – vulgo edifícios - sempre motivaram acesas discussões que navegam no triângulo das bermudas formado pelo egocentrismo de quem projecta, as aspirações individuais de quem é proprietário ou utilizador e o politicamente correcto promovido por essa entidade abstracta e nebulosa que responde pelo nome de opinião pública. Quem projecta bate-se pela preservação de uma imagem inicial que não mostre sinais de colonização da obra por terceiros e perpetue a excelência do seu desenho. O facto de algumas soluções mostrarem ser muitas vezes desadequadas ou de necessidades quotidianas obrigarem a uma customização da obra por parte dos utilizadores, é assunto que não merece muita consideração quando comparado com a importância da preservação da sacrosanta imagem original. A nebulosa e flutuante opinião pública alinha, regra geral, pelo mesmo diapasão da petrificação do edificado, sendo avessa à mudança ou às marcas espontâneas da vida no construído.
Dois grandes tubarões navegam assiduamente neste fórum triângular e, pela preocupação que suscitam aos senhores do projecto e à zelosa massa de cidadãos preocupada com estas coisas da estética, parecem carregar aos ombros décadas de descaracterização do território e do belo edificado nacional. Se o caro leitor, recordando as ceroulas ao vento, identificou a roupa estendida na via pública - ó atentado maldito - como um dos predadores, acertou! O outro é uma verdadeira instituição da construção espontânea portuguesa e dá pelo nome de marquise de alumínio.
Mas o Grande Legislador, sempre atento às necessidades de uma comunidade exigente, prepara-se para resolver de forma impiedosa estas práticas tão ofensivas do bem estar público e da boa arquitectura. Depois da lei esperam-se zelosas brigadas da Polícia Municipal equipadas com poderosos Segways em busca de prevaricadores. Onde durante 60 anos secou a camisola do Eusébio, já não poderá mais secar a camisola do Cristiano Ronaldo por que alguém um dia entendeu que roupa estendida é feio... Feio, diriamos nós, é desperdiçar energia e dinheiro numa máquina de secar para se fazer uma coisa que a cultura popular à muito tinha resolvida com dois paus e um fio.
Uma cidade é como uma casa, precisa das impressões dos seus habitantes cravadas nas suas paredes, no seu chão, nas suas árvores, nos seus bancos... Precisa de testemunhos, de roupa estendida... é importante que o espaço público possa ser objecto da imprevisibilidade, da interacção e das marcas do quotidiano de quem nele habita e não apenas um cenário acéptico que obedece a um manual de condutas castrador.
Mestre Siza, podemos pôr um estendal em Serralves?
(originalmente publicado na revista BlueDesign num número que agora me falha a memória)
LRO