16.9.09

Marquises e ceroulas

Venho só aqui de fugida para dizer que, como arquitecto em geral, cidadão em particular e ser humano em específico, não encontro grande lógica, relevância ou interesse no movimento contra as marquises. As pessoas que se apropriem dos edifícios, que cavem neles as marcas da sua intimidade, que a modifiquem, que a habitem. A arquitectura é feita para ser vivida, usada e até, às vezes, maltratada e não para ser emulada pela objectiva do fotógrafo ou aprisionada no ego dos seus autores. A propósito desta problemática de apropriação do objecto construído gostaria de recordar ao caro leitor, caso seja oportuno, uma pequena prosa escrita há mais ou menos um ano por este que agora vos importuna:

Duas Ceroulas ao Sol...

Roupa. Existe lisa, às bolinhas, mais sofisticada, menos sensual, de poliester, caxemira ou algodão… No entanto, seja ela prêt-à-porter ou de gala, necessita de ser lavada. O que significa que, usando amaciador ou dois em um, todo o par de ceroulas terá de secar. E, chegados a este ponto introduzimos uma pequena mas relevante notícia para a prática arquitectónica veículada pela agência Lusa. Se, como é sabido, as grandes mudanças fazem-se anunciar por pequenos sinais, estes vêm para já de Tarragona, Espanha, onde o município fez aprovar uma lei que, e passamos a citar: “para garantir o respeito mútuo e a convivência entre vizinhos - é proibido estender roupa à vista do público, nas varandas e janelas.” Neste momento, já esquecido do suave odor a lavanda das ceroulas, interrogar-se-á o caro leitor: que raio de relevância pode ter uma norma municipal de nuestros hermanos para a prática arquitectónica aqui do burgo? Pois bem, correndo o risco de o desiludir, é a essa ligação improvável que se dedica esta prosa.
Ponto prévio: Portugal é célere na importação de boas práticas, principalmente, se elas vierem em letra de lei e não implicarem mudanças estruturais mas antes proibições e respectivas coimas. Portanto, a questão não será se, mas quando será adoptada tão importante peça legislativa em território luso?

Esclarecido este ponto, avancemos para o âmago da questão: as formas de ocupar e habitar os objectos arquitectónicos – vulgo edifícios - sempre motivaram acesas discussões que navegam no triângulo das bermudas formado pelo egocentrismo de quem projecta, as aspirações individuais de quem é proprietário ou utilizador e o politicamente correcto promovido por essa entidade abstracta e nebulosa que responde pelo nome de opinião pública. Quem projecta bate-se pela preservação de uma imagem inicial que não mostre sinais de colonização da obra por terceiros e perpetue a excelência do seu desenho. O facto de algumas soluções mostrarem ser muitas vezes desadequadas ou de necessidades quotidianas obrigarem a uma customização da obra por parte dos utilizadores, é assunto que não merece muita consideração quando comparado com a importância da preservação da sacrosanta imagem original. A nebulosa e flutuante opinião pública alinha, regra geral, pelo mesmo diapasão da petrificação do edificado, sendo avessa à mudança ou às marcas espontâneas da vida no construído.

Dois grandes tubarões navegam assiduamente neste fórum triângular e, pela preocupação que suscitam aos senhores do projecto e à zelosa massa de cidadãos preocupada com estas coisas da estética, parecem carregar aos ombros décadas de descaracterização do território e do belo edificado nacional. Se o caro leitor, recordando as ceroulas ao vento, identificou a roupa estendida na via pública - ó atentado maldito - como um dos predadores, acertou! O outro é uma verdadeira instituição da construção espontânea portuguesa e dá pelo nome de marquise de alumínio.

Mas o Grande Legislador, sempre atento às necessidades de uma comunidade exigente, prepara-se para resolver de forma impiedosa estas práticas tão ofensivas do bem estar público e da boa arquitectura. Depois da lei esperam-se zelosas brigadas da Polícia Municipal equipadas com poderosos Segways em busca de prevaricadores. Onde durante 60 anos secou a camisola do Eusébio, já não poderá mais secar a camisola do Cristiano Ronaldo por que alguém um dia entendeu que roupa estendida é feio... Feio, diriamos nós, é desperdiçar energia e dinheiro numa máquina de secar para se fazer uma coisa que a cultura popular à muito tinha resolvida com dois paus e um fio.

Uma cidade é como uma casa, precisa das impressões dos seus habitantes cravadas nas suas paredes, no seu chão, nas suas árvores, nos seus bancos... Precisa de testemunhos, de roupa estendida... é importante que o espaço público possa ser objecto da imprevisibilidade, da interacção e das marcas do quotidiano de quem nele habita e não apenas um cenário acéptico que obedece a um manual de condutas castrador.

Mestre Siza, podemos pôr um estendal em Serralves?

(originalmente publicado na revista BlueDesign num número que agora me falha a memória)

LRO